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Interseccionalmente: reflexões sobre as mortes de Demétrio e João Pedro!

O que um suicídio de jovem trans negro tem em comum com o assassinato de um jovem cis negro? Ambos são jovens e negros, mas, há relação entre um assassinato e um suicídio? E entre a morte de alguém cisgênero com alguém transgênero, há relação?

Morte de João Pedro Mattos expõe as feridas do racismo

No dia 18 de maio, João Pedro Mattos (14 anos), jovem negro, foi baleado dentro de casa em operação policial no Estado do Rio de Janeiro, foi levado pela Polícia Militar (PM) de helicóptero, sem acompanhante e autorização da família. Apenas no dia seguinte, o corpo foi localizado no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo. A ação policial é um braço forte e constante da ação necropolítica que expõe as feridas do racismo.

Quando racismo e transfobia se cruzam: a morte de Demétrio Campos

No dia 17 de maio, Demétrio Campos (23 anos), jovem trans negro é suicidado. A vivência da trasmasculinidade negra insere Demétrio a um regime de abordagens policiais violentas, acusações de machismo, exposição em culturas de cancelamento. Tanto o suicídio como a depressão possuem relações com as opressões vividas, não são questões individuais, fazem parte da necropolítica de nossos corpos, conforme analisaremos mais à frente.

O que é interseccionalidade?

A interseccionalidade é uma categoria analítica e política, pensada pelo feminismo negro, capaz de promover análises cruzadas de diferentes formas de opressões estruturais. Deste modo, é possível compreender que diferentes formas de opressão como gênero, classe e raça se correlacionam. O argumento que apresento aponta para a necessidade de entendermos a interseccionalidade como um dispositivo construtor de alianças políticas de resistência à necropolítica.

O que é Necropolítica?

Para o filósofo negro camaronense Achille Mbembe, podemos entender necropolítica como o modo pelo qual a soberania do Estado, ao invés de assegurar a vida de toda a população, legitima a morte de certos corpos, enquanto garante a vida de outros. A necropolítica coloca corpos negros, de mulheres, de juventudes periféricas, de indígenas e de pessoas trans* numa condição precária.

O que são vidas precárias?

Para a filósofa estadunidense Judith Butler, vidas precárias escapam a um reconhecimento como vida. Dessas vidas é subtraída qualquer tipo de inelegibilidade humana. Sem acesso a direitos e garantias, uma vida precária não possui representação política. São vidas que a necropolítica pode matar, sem que haja luto. Os lamentos pela morte de Demétrio, de João, não chegam sequer a arranhar a política de Estado brasileira que legitima a precariedade de nossas vidas.

A necropolítica autoriza a morte de vidas precárias

As vidas de Demétrio Campos (jovem trans negro) e João Pedro Mattos (jovem cis negro) são vidas precárias, executadas pela necropolítica. Suas mortes possuem relações estruturais: ambos são negros, e esse pertencimento étnico-racial coloca-os numa dimensão precária. Além de negros, ambos são periféricos, o que os coloca sob a mira de um regime de abordagens policiais violentas.

A polícia matou efetivamente João, em mais uma de suas operações truculentas no Complexo do Salgueiro. O jovem foi baleado dentro de casa. Por outro lado, Demétrio denunciou por diversas vezes o quanto sua performance transmasculina negra passou a ser enquadrada pela polícia como potencialmente criminosa. Percebe-se, portanto, que a raça une experiências singulares como as da transgeneridades com a cisgeneridade.

Não tenho dúvidas que o racismo que matou Demétrio também matou João. Importante explicar que Demétrio não se suicidou, ele foi suicidado, na perspectiva de que a vivência das opressões imposta ao ser jovem, trans, negro, periférico geraram uma precariedade que diminui a potência de vida.

Cruzar essas opressões nos permite entender que, além da raça, Demétrio e João compartilhavam uma experiência juvenil, uma experiência também periférica. Pensar esses atravessamentos é extremamente necessário na construção de uma política de coalizão.Para mim, que sou uma travesti negra, que sinto na pele o racismo e transfobia de forma cruzada, que não posso escolher entre ser negra ou travesti, nem contra qual opressão lutar, as mortes de Demétrio e João são um alerta de como ainda precisamos promover análises interseccionais que nos permitam entender como o racismo, a transfobia, as questões de gênero, a criminalização da juventude, as localizações geográficas/espaciais, fazem uma encruzilhada que precarizam nossas existências.

Por que precisamos pensar as interseccionalidades?

A interseccionalidade, para a feminista negra brasileira Carla Akotirene, é uma encruzilhada. Há muitos caminhos: alguns se cruzam, outros se separam. A questão que proponho é: como pensar alianças entre esses múltiplos caminhos respeitando as singularidades, os nossos diversos modos de andar?

Não podemos negar as diferenças entre ser jovem trans negro e ser jovem cis negro, mas, não podemos criar políticas de apartheid entre estes, o racismo atravessa ambos os corpos. Do mesmo modo que as opressões de gênero atravessam mulheres cis brancas, negras e indígenas, também mulheres trans* e travestis brancas, negras e indígenas.

Ao passo que o feminismo negro cria a interseccionalidade como possibilidade de entender que a precariedade de mulheres negras se localiza no encontro entre raça e gênero. Não se perde de vista que a raça une mulheres negras e homens negros, e aponto que tanto para a cisgeneridade como para a transgeneridade, a dimensão racial trará a precariedade.
Do mesmo modo, mulheres negras e brancas, apesar de vivenciarem opressões distintas, também estabelecem conexões, e quando pensamos o transfeminismo, é justamente por compreender que as lutas de travestis e mulheres trans* se inserem dentro da epistemologia política feminista de enfrentamento do machismo.

Pensar interseccionalmente é unir nossas lutas políticas

A interseccionalidade conecta opressões, ela não nos separa, ao contrário, requer pensar o modo estrutural como as violências ocorrem. Separar nossos corpos foi uma prática colonizadora.

É preciso pensar de outro modo. Como nos ensina a feminista negra e caribenha-americana, Audre Lorde, as ferramentas do colonizador nunca vão desmantelar a casa-grande. Se de um lado não podemos ignorar nossas diferenças, por outro, não podemos deixar de enfatizar o modo como nossos corpos vivem, numa dimensão articulada, experiências precárias operadas por uma necropolítica que autoriza a morte de vidas negras, pobres, transgêneras, indígenas, jovens e de mulheres.

Agatha Felix, João Pedro Mattos, David Nascimento, Dandara Kettlyn, Demétrio Campos, Claudia Ferreira, Miguel Otávio da Silva, George Floyd, Quelly da Silva, Evaldo dos Santos, Luanny Sousa… enquanto não pensarmos interseccionalmente as opressões, nomes como esses continuarão se tornando: notícias por um ou dois dias, números de estatísticas, casos policiais não resolvidos, já que não nos é permitido dentro de um regime necropolítico assumir o lugar de vida humana.

As variadas opressões produzem precarizações distintas, mas, não podemos perder de vista que o poder normatizador que classifica corpos de mulheres cis brancas e negras, de homens negros, de pobres e periféricos, indígenas, travestis, mulheres e homens trans* como vidas precárias tem suas raízes fincadas na política colonial que ergueu esse país. Como afirma a escritora negra portuguesa, Grada Kilomba, a colonialidade é uma ferida profunda, esta ferida ainda está aberta, ela ainda sangra.

Na vida perdida de Demétrio, de João, de outras vidas que perdemos, as feridas da colonialidade sagram. Essas feridas sangram em nós, nos matam! Às vezes, a dor é tão forte que “eu não consigo respirar”, como disse George Floyd.

Cada uma de minhas irmãs travestis que morre, é essa a sensação que eu tenho. Eu não consigo respirar quando assisto o vídeo brutal em que Iyanna Dior, mulher trans negra é violentada durante uma manifestação em Minnesota, o Estado norte-americano palco de protestos contra a execução de George Floyd, homem cis negro, subindo a #blacklifesmatter.

Quais vidas negras importam então? A luta antirracista precisa entender que todas as vidas negras importam, não apenas as de homens cis negros.

O desafio que precisamos superar é como transversalizar nossas pautas políticas sem que isso signifique a supressão de nossas demandas. Por exemplo, sabemos que por mais que parece inclusivo afirmar: “vidas humanas importam”, esse lema universalista retira o foco de corpos que estão mais precarizados dentro da necropolítica. Precisamos nomear constantemente nossas opressões sob o risco de sermos apagados. 

 Conclusão:

Quando pensamos nossas interseccionalidades, entendemos que não podemos admitir que o movimento negro se manifeste contra a morte George Floyd e se cale frente a violência sofrida por Iyanna Dior. É inadmissível também que o movimento negro não entenda que a morte de Demétrio tem estreita relação com a sua vivência racial.

É por isso, que defendo a urgência de enegrecer o movimento trans*, transgenerizar o movimento negro, fazer das questões raciais e gênero uma demanda importante dentro das periferias, politizar cada vez mais nossas juventudes.

Se não pensarmos interseccionalmente, continuaremos perecendo frente à necropolítica. A necropolítica insiste em nos matar. Enquanto não pensarmos alianças interseccionais, continuaremos a morrer.

Glossário

De acordo com Jaqueline Gomes de Jesus (2012):

Cisgênero: Conceito “guarda-chuva” que abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento. Transgênero: Conceito “guarda-chuva” que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.

Texto por Letícia Carolina, Doutoranda em Educação pela UFPI. Trans
Arte por Ariely Suptitz

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