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Julho das Pretas: Feminismos Plurais e Mulheres Negras no mercado de trabalho

Julho das pretas: Feminismos Plurais e Muheres Negras no Mercado de Trabalho

Aos poucos, junho tem se colorido cada vez mais, por conta do dia 28 de junho. Um dia ficou pouco para essa celebração, de modo que o mês junho pinta-se com a bandeira do arco-íris. Mas, pra mim que sou uma Travesti Negra, a luta não acaba, encerrando o Junho do Orgulho, iniciamos as atividades do Julho das Pretas. Espera… você não conhece esta data? Pois, vamos aprender um pouco mais. 

Contexto histórico e político do Julho das Pretas

Como surgiu o julho das pretas? É um mês para celebrar as lutas e conquistas das mulheres pretas, embora tenhamos o mês de março dedicado às mulheres e o mês de novembro dedicado as negritudes, precisamos reconhecer a particularidade das mulheres negras que possuem suas trajetórias marcadas pela intersecção entre gênero e raça.

O julho das pretas nasce no Brasil a partir de 2013 uma proposição do Odara – Instituto da Mulher Negra, que amplia as discussões propostas a partir de 1992 no primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas em Santo Domingo, na República Dominicana. Nesse contexto, em 1992 a ONU foi pressionada e reconheceu o dia 25 de julho como Dia Internacional da Mulher Afro-Latina-Americana e Caribenha. No Brasil a data 25 de julho foi instituída como Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, pela lei federal nº 12.987 de 2014. 

Por conta da relevância das problemáticas interseccionais que atravessam as mulheridades e feminilidades negras, os debates são realizados durante todo o mês, emergindo o Julho das Pretas. 

Quem foi Tereza de Benguela?  

 Tereza de Benguela é uma das tantas outras heroínas negras que precisamos conhecer no intuito de fortalecer as mulheridades e feminilidades negras. A história conta a visão limitada daqueles que se declaram vencedores, é inadmissível que um país tão diverso como o nosso tenha apenas homens brancos cisheteronormativos como heróis. É nessa busca por reconhecer e valorizar a herança cultural e ancestral negra entre as mulheridades que destacamos o papel da líder quilombola Teresa de Benguela.

Teresa, liderou na região que hoje corresponde ao Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia, o Quilombo do Quariterê durante duas décadas do século XVIII. Os Quilombos são lugares de resistência coletiva, o Quariterê abrigava mais de 100 pessoas negras e indígenas, localizado no pantanal, com difícil acesso, Teresa navegava em barcos imponentes pelos rios pantaneiros e era chamada entre as pessoas do Quilombo de Rainha Teresa. 

Após duas décadas de resistência à escravidão o Quariterê caiu em 1770. Teresa, permanece viva no imaginário social coletivo das mulheres Afro-Latina-Americana e Caribenha como arquétipo de resistência que alimenta a nossa afroancestralidade. 

Julho das Pretas: comemorar ou resistir? 

  Os dados não são nada animadores, de acordo com o IPEA em 2019, 3.737 mulheres foram assassinadas no Brasil, sendo 66% negras, ainda de acordo com o instituto o risco de uma mulher negra ser vítima de homicídio em 2019 foi 1,7 vezes maior do que o de uma mulher não negra. 

No que tange ao mercado de trabalho, os diversos dados copilados pela pesquisa “Potências (in)visíveis: a realidade da mulher negra no mercado de trabalho” apontam que as mulheres negras são o maior grupo demográfico do país (29%), entretanto uma mulher negra recebe 44% menos que um homem branco. A pesquisa ainda destaca que mulheridades e feminilidades negras possuem a menor presença em cargos de liderança e no ano de 2020, em São Paulo, representaram menos de 7% das contratações. 

Os dados evidenciam uma realidade cruel que pode ser ampliada se pensarmos em mais marcadores interseccionais como mulheres trans e travestis negras ou ainda mulheres negras com deficiências. Frente às estatísticas percebe-se que as desigualdades sociais e a violência no Brasil possuem uma raça e um gênero muito bem definidos, as mulheridades e feminilidades negras constituem a base da pirâmide social brasileira.

O Julho das Pretas é um mês de resistência, denunciamos as inúmeras violências as quais mulheres negras estão submetidas, a mobilização é para a denúncia, mas também para a ação, nesse sentido, comemorar é resistir, te convida a pensar, o que nós podemos fazer para uma ambiente corporativo mais inclusivo para as mulheres negras?

Rompendo estereótipos no Julho das Pretas: feminismos plurais e mulheres negras.

Os muitos estudos e pesquisas desenvolvidos pela antropóloga negra brasileira, Lélia Gonzalez, e pela socióloga negra estadunidense Patrícia Hill Collins, evidencia que as mulheres negras são reduzidas a estereótipos preconceituosos que diminuem a nossa potência. Em linhas gerais, destacarei a partir de ambas as pensadoras 4 estereótipos que precisamos superar:

  1. Mãe-preta (Mammy): 

Esse estereótipo guarda um vínculo profundo com a escravidão, quando mulheres negras trabalhavam na casa dos seus senhores como cozinheiras e serviam aos filhos da Sinhá como amas de leite. A mulher negra nesse estereótipo é vista como aquela que cuida acima de tudo, cozinheira de mão cheia, está sempre pronta para servir, por isso é destituída de sonhos próprios e até mesmo de sua sexualidade. Nesse contexto, a mulher negra só serve para trabalhar em função de outras pessoas; 

  1. A Mulata: 

Bastante presente na cultura brasileira esse estereótipo produz uma hipersexualização das mulheres negras que se transformam em um objeto de consumo para as masculinidades. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que entre 2017 e 2018, 51% das mulheres vítimas de estupro eram negras, os dados de 2019 apontam que entre as mulheres que sofrem assédio, 40,5% são pretas e 36,7%, pardas. Precisamos mudar essa realidade!

  1. Durona/Forte: 

Bastante exaltando socialmente, nesse estereótipo a mulher negra é vista como uma guerreira imbatível, como aquela que enfrenta todas as dores. É preciso compreender que ser forte não é uma escolha de mulheres negras, por isso, é fundamental não romantizar esse processo. O compromisso não simplesmente de reconhecer essa força das mulheres negras é necessário estabelecer um pacto coletivo contra o (cis)sexismo e racismo. De outro modo, potencializar ações que promovam a saúde mental de mulheres negras.

  1. Escandalosa/Barraqueira: 

A partir desse estereótipo, mulheres negras são lidas como má educadas, que não possuem trejeitos sociais, falam alto, não sabem se vestir, “gostam de entrar em brigas” e associar esses comportamentos a mulheres negras também traz um viés de classe, uma vez que a “regras de etiqueta” são pensadas para mulheres da elite, portanto demarcar mulheres negras assim, é um modo de justificar sua exclusão de espaços sociais.         

Julho das Pretas e a Diversidade e Inclusão nos ambientes corporativos: 

Como o rompimento desses estereótipos podem nos conduzir a boas práticas contra a desigualdade de gênero? Primeiro é preciso reconhecer que esses estereótipos funcionam como barreiras para a entrada de mulheres negras no mercado de trabalho ou condicionam estas apenas a algumas funções específicas, por exemplo, é sempre bom ter uma “mãezona preta” na cozinha do escritório ou sempre disposta para fazer a limpeza. Assim como a “linda mulata, tipo exportação” funciona bem para ser recepcionista, só precisa “alisar o cabelo e se vestir direitinho”. De outro modo, é difícil contratar “mulheres negras barraqueiras”, elas não sabem trabalhar em grupo e sempre se envolvem em confusão, nesse contexto quando um homem branco discorda de algo ele é visto como alguém de personalidade forte e com opinião própria, se uma mulher negra discorda: “lá vem a encrenqueira!”. As “mulheres negras duronas” são ótimas, sempre dispostas a assumir trabalhos além de suas atribuições.  

É imperioso que se entenda a potencialidade das mulheres negras, que podem ocupar diversos espaços de acordo com suas qualificações e condições de desenvolvimento. As trajetórias de mulheres negras são irregulares, algumas conseguem obter altas qualificações outras não, mas independente da qualificação, o racismo e o (cis)sexismo estrutural se impõem como barreiras para sua absorção no mercado de trabalho. Por isso, devemos considerar desde as mulheres negras qualificadas que não acessam promoções e cargos de lideranças e as mulheres negras que por falta de qualificação não acessam qualquer posto no mercado. 

Destaco nesse cenário, não só no Julho das Pretas, a necessidade de se pensar como estratégia de D&I em processos de mentoria e trainee para mulheres negras; diagnóstico de composição da empresa que revelem onde estão as mulheres negras de modo a acompanhar se estas possuem as mesmas oportunidades de crescimento na cadeia de valores e lideranças da empresa; fortalecer o debate interseccional entre os Grupos de Afinidade (GAs) para a equidade racial e de gênero; e expressar enfaticamente no Código de Conduta a não tolerância do racismo, do assédio sexual e da discriminação de gênero nos espaços laborais.   

Um papo de preta pra preta no Julho das Pretas

Agora, aproveitado o Julho das pretas, quero dialogar com as minhas companheiras negras, pretas, pardas, como você se reconheça, primeiramente, SE RECONHEÇA! Não podemos nos assumir como negras e pretas a maior parte de nossas vidas, a nos envergonhar da nossa cor, da nossa raça. Não precisamos ter vergonha de nos referir a nós mesmas como mulheres pretas e negras. Precisamos exercer nosso poder de “autodefinição” como nos ensina Patrícia Hill Collins, nós mulheres negras precisamos romper com os estereótipos e definirmos a nós mesmas em nossas potências. 

Preta, onde você tem guardado os seus silêncios, suas raivas e as suas dores? Eu te convido e pensar e buscar lugares de acolhimento afetivo e político, pode ser na leitura da obra de alguma outra preta, pode ser na associação do bairro ou no grupo de afinidade da sua empresa, pode ser na terapia, pode ser em muitos espaços. Mas, nunca minha preta, nunca se anule enquanto mulher preta. Audre Lorde, nos diz que e o medo da raiva e o silêncio não nos ensina nada, precisamos encontrar modos de fazer o que nos inquieta por dentro virar poesia, lágrima, palavra, riso, fora do corpo.

Julho das Pretas: Mulheres negras que inspiram

Mulheres negras que inspiram

Por fim, aproveitando o Julho das pretas, irei indicar produções culturais, acadêmicas, artísticas e políticas de mulheres negras cis e trans que nos inspiram e fortalecem na caminhada. Vou começar com o álbum visual “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água“, da baiana Luedji Luna, trabalho que lhe garantiu a indicação ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira. A musicalidade de Luedji atravessa diferentes questões das subjetividades de mulheres negras desde a autopercepção, a solidão, a violência e resiliência. Simplesmente contemplem a magnificência deste trabalho.

No ativismo político pela conquista dos direitos humanos precisamos exaltar e conhecer o trabalho da travesti negra Erika Hilton, a mulher vereadora com o maior número de votos no país, mostrando que sim, mulheres cis/trans negras podem estar na política, para conhecê-la indico o episódio “O cotidiano de Erika Hilton na política” no podcast Conversa de Portão do Nós, mulheres da periferia

Entre os tantos filmes que me marcaram não poderia deixar de indicar “Histórias Cruzadas” que conta com a atuação marcante de Viola Davis e narra o cotidiano brutal de empregadas domésticas negras nos Estados Unidos na década de 1960. E como leitura indico duas obras, a primeira para repensarmos nossos afetos, “Tudo sobre o amor: novas perspectivas”, de bell hooks. E o livro “Nem ao centro, nem à margem! Corpos que escapam às normas de raça e de gênero” da professora travesti preta brasileira Megg Rayara Gomes de Oliveira, a obra amplia o entendimento feminismo negro para além da cisgeneridade.

Texto por: Letícia Carolina, professora e escritora do Livro “Transfeminismo”.

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