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Carta aos meus agressores: com amor, Letícia

ilustração de fundo pastel, com uma mulher negra de vestido amarelo entregando uma carta a ela mesma do passado, criança, através de um portal

Vocês estão comigo, seus olhares me seguem onde eu vou, seus dedos apontados, suas vozes graves e estridentes, seus risos ecoam, quantas vezes vocês riram e gritaram: baleia, viado! Vocês são o medo em cada passo que dou, vocês me puseram numa corda bamba que se estende entre mim e o passado, entre mim e o futuro, vocês me fazem tremer quando olho pra trás, hesitar quando olho pra frente.

 

imagem de fundo pastel com escrito branco: Vocês estão comigo, seus olhares me segue onde eu vou, seus dedos apontados, suas vozes graves e estridentes, seus risos ecoam, quantas vezes vocês riram e gritaram: baleia, viado!

 

Vocês são a pedra que insiste em permanecer em meu caminho, a pedra sempre pronta pra me fazer tropeçar. Vocês sempre quiseram me fazer cair. Seus risos e piadas me fizeram sonhar dentro de uma gaiola. Duvidar de mim mesma, questionar meu potencial, minha coragem, vocês me fizeram acreditar que eu não chegaria a lugar nenhum além do fosso no qual me puseram.

Às vezes, quando olho no espelho, ainda vejo aquela menina assustada, com os olhos tristes, com lágrimas que transbordam o olhar, um rubro olhar de tanto chorar, ela me olha, ela me pede abraço e proteção. Essa menina sou eu, ela vive em mim, eu me abrigo nela, sem nada falar ela faz no abraço o corpo vibrar palavras, as muitas palavras de dor esculpidas em sua pele se derramam sobre mim.

É por isso que decidi escrever essa carta. Preciso contar a vocês que quero perdoá-los por tudo que fizeram. Vocês estavam errados e eu não quero errar agora também. Eu queria deixar vocês para trás, que suas lembranças não fizessem mais parte de mim, mas em todas as conquistas seus dedos-vozes-olhares estão lá. 

Não sinto que devo ser grata a vocês. Não sinto que cheguei onde cheguei por ter sofrido tudo que sofri. É verdade que essas dores me fizeram mais forte, mas não podemos naturalizar o caminho da dor como possibilidade de aprendizagem. 

Eu sei que eu poderia conquistar tudo que conquistei sem tantas dores e marcas, se ao invés de intimada, eu tivesse sido encorajada. Não! Vocês tomaram tanto de mim, as minhas vitórias não pertencem a vocês! 

Eu escrevo pra saber se vocês se tornaram pessoas melhores. Se vocês também lembram da infância do modo como eu me lembro. Se vocês também carregam dores, se aprenderam a lidar com elas. Vocês realizaram os sonhos de vocês? Pergunto, mas não sei se gostaria de ouvir as respostas, não sei como seria ficar frente a frente com vocês. 

 

imagem de fundo pastel com escrito branco: "eu escrevo para saber se vocês se tornaram pessoas melhores. Você realizaram seus sonhos?"

 

Não lhes desejo mal. Na verdade, até quero perdoar vocês. Uma parte de mim já perdoou, mas, apesar disso, vocês insistem em fazer parte de mim. As lembranças me cercam, sufocam. Sinto que perdoar não é esquecer. Perdoar deve ser aprender a criar outros modos de vida a partir do que lhe trouxe dor.

Começo a entender que o fato de vocês insistirem em me acompanhar em cada vitória é por conta de serem vocês, e não eu, os maiores questionadores do meu sucesso. Toda essa insegurança não vem de mim, ela é parte das lembranças de vocês.

Vocês tentaram me fazer acreditar que eu não era forte o suficiente, mas cada respiração é prova do quanto vocês estavam errados. Viver com medo é um ato de coragem. A coragem não vence o medo: ela o abraça, pois o medo precisa de aconchego.

A lembrança de vocês me faz perceber o quanto eu sou forte, o quanto eu preciso lutar para que as outras como eu, possam seguir seus sonhos sem a existência das marcas deixadas por agressores como vocês. É o que posso fazer na impossibilidade de apagar vocês: possibilitar que outras não tenham seus sonhos postos em gaiolas imaginárias.     

Eu escrevo e as palavras vibram como um mantra. Na frequência do chakra cardíaco, enchendo a vida de amor, perdão e compaixão, o pueril coração ferido ainda sangra. Mas as batidas são firmes como os tambores ancestrais: as raízes da resistência que me lembram que nosso dever ancestral é ser feliz.

Eu escrevo a vocês, meus agressores, pra dizer que eu escolhi seguir frágil e que faço da fragilidade, força; que faço das lembranças, resistência; do medo, sonhos. Saibam que não fariam falta se não estivessem aqui. Todavia, em suas constantes permanências, celebrem comigo minhas vitórias: mesmo elas não sendo suas, me alegra dividir a alegria com quem me trouxe dor.

 

ilustração de fundo pastel, com uma mulher negra de vestido amarelo entregando uma carta a ela mesma do passado, criança, através de um portal

 

Letícia Carolina é a primeira travesti professora da UFPI e do Brasil. Responsável por três disciplinas na instituição, ela orienta alunos para o TCC e tem um grupo quinzenal de estudos. Escreve artigos mensalmente para publicar em revistas e eventos, nacionais e internacionais, escreve capítulos de livros e desde o ano passado também escreve para o blog da Nohs Somos.  

Texto por Letícia Carolina Nascimento
Revisão por Domenique Rangel Leite
Ilustração por Thadeu dos Anjos
Organização por Marianna Spindola Godoy

A Nohs Somos trabalha para mapear espaços seguros e acolhedores à população LGBTI+. Você pode ajudar avaliando locais amigáveis na nossa plataforma!

3 respostas

  1. Leticia,
    Percorri a tua dos contigo nessa carta e vivrei com as tuas vitóriass. Te abraçando daqui do outro lado do mundo, te desejo VIDS!

    1. Ica Pithon sinto seu abraço e afeto mesmo a distância, muita gratidão por seu comentário, esse é o sentido da carta poder externar o que me afeta por dentro, pra fazer a jornada mais leve, um grande abraço! Com amor Letícia.

  2. Incrível. Sublinhou em poucas palavras os sentimentos contraditórios que levamos ao longo da vida, com muito carinho, amor e atenção. Incrível.

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