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Ser trans não é doença: A patologização trans através da medicina

No primeiro texto da série, nós discutimos sobre o Dia Internacional pela Despatologização Trans. Nesse, vamos pensar além  e descobrir o que dois  manuais de medicina tem a ver com isso. Você vai entender um pouco mais sobre a relação  dos manuais de saúde, como o DSM e   a CID, com a patologização histórica da comunidade trans. 

Desde quando a medicina nos patologiza?

O artigo de Pierre-Henri Castel  “Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual (1910-1995)” mostra uma série de publicações científicas na área da medicina feitas desde o início do século XX. Muitas dessas publicações  tentaram nos classificar e nos diagnosticar,  visto que pessoas trans não correspondiam ao binarismo de gênero. Os termos “transexualismo“, “transvestismo” ou “transvestitismo eram comuns para diagnosticar nossas existências, pois a transgeneridade era/é entendida como uma patologia

Na área da medicina, existem dois manuais que norteiam a prática médica e caracterizam transtornos mentais e condições relacionadas à saúde:

  • DSM – Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais criado pela APA, Associação Americana de Psiquiatria. 
  • CID –   Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde criada pela OMS, Organização Mundial da Saúde.

Diferente do DSM, a CID não envolve apenas transtornos mentais, mas também diversas doenças e outras condições relacionadas à saúde, tal como a gravidez. É com base no DSM-IV e na CID-10 que a portaria do processo transexualizador no SUS foi estabelecida em 2008. Ela pode ser encontrada em sua versão ampliada em 2013 aqui

Um spoiler: a portaria está desatualizada pois hoje temos duas outras versões dos manuais. Uma que ainda nos patologiza (DSM-5) e outra que não o faz (CID-11).

DSM 

Há  5 versões do DSM, mas a transgeneridade foi inserida apenas a partir da segunda versão como:

  • 2° versão – Transvestismo (1968)
  • 3° versão – Transexualismo (1980)
  • 4° versão – Transtorno de Identidade de Gênero (1994)
  • 5° versão – Disforia de Gênero (2013)

Em relação aos dois primeiros termos, “transvestismo” e “transexualismo”, sabemos que o sufixo “ismo” possui conotação pejorativa e está relacionado a doenças. Apesar das mudanças nas versões seguintes em relação ao nome, ainda há patologização em “Transtorno de Identidade de Gênero” e, além disso,  estamos listades em um Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 

Para uma análise crítica das últimas três versões do DSM, recomendo o artigo publicado em 2019: “Patologização Da Transexualidade: Uma Leitura Crítica Das Transformações Ocorridas Nas Três Últimas Versões Do Dsm”. Neste artigo, os  autores, Roberto de Oliveira Preu e Carolina Franco Brito,   discutem como o diagnóstico da transgeneridade muitas vezes se camufla e se mistura com a patologização da homossexualidade até os dias de hoje. Eles chamam a atenção para o fato de o manual, assim como a CID-11, mencionar identidades de gênero para além do binarismo, mas pautar toda a descrição e o diagnóstico a partir da cisgeneridade e da higienização dos corpos trans.

Seria a disforia uma cisforia? 

O DSM entende disforia de gênero diferente do que nós pessoas trans a entendemos. Para muites de nós, disforia se refere ao desconforto e ao sofrimento físico e emocional que temos sobre os nossos corpos em relação às expectativas sociais (as nossas e as dos outros). 

A nossa disforia não é causada por nós mesmes. Ela é causada por um cistema que determina limites para ser homem/mulher e entende apenas dois gêneros como possíveis. Seria então a disforia uma cisforia?

A cisnorma é uma estrutura tão internalizada que impede pessoas cis de nos olharem como normais e de verdade por não sermos cópias exatas da cisgeneridade. Esse cistema faz com que até mesmo pessoas trans não vejam possibilidades para os seus e outros corpos além do binarismo de gênero e da suposta passabilidade.

O desconforto e o sofrimento psicossocial que o DSM caracteriza como fator essencial para o nosso diagnóstico é causado pela cisnorma. Esta “norma” nos afirma de várias maneiras que não somos nem gente, quem dirá homem, mulher ou outras identidades de gênero. Entretanto, o DSM não olha para a organização social como o problema, mas sim para nós.

O problema dos conceitos de “transgênero” e “transexual” do DSM

Você sabe a diferença entre os termos “transgênero” e “transexual”?

Para o DSM-5, “transgênero”  refere-se ao amplo espectro de indivíduos que, de forma transitória ou persistente, se identificam com um gênero diferente do de nascimento. “Transexual” seria quem deseja ou está passando por algum processo de transição social. Este pode  implicar ou não em mudanças corpóreas obtidas através do uso de hormônios e cirurgias. 

A tentativa de nos diferenciar baseada em fazer hormonioterapia, cirurgias (ou não) não condiz com nossas vivências. A hormonização e mudanças cirúrgicas fazem parte de muites de nós, mas não de todes. 

Não é nenhuma surpresa que a psiquiatria não procure escutar as discussões que partem de diferentes movimentos trans sobre o tema e nos classifique dessas duas formas errôneas. 

“Transgênero” e “transexual” são termos com uma contextualização histórica diferente e o consenso proposto pelo DSM  não está de acordo  com a realidade. Transgênero surgiu como uma alternatividade norte-americana para se sobrepor a noção de que identidades trans teriam algo a ver com sexualidade. Já o termo Transexual surgiu na área médica, mas, assim como o primeiro, também é utilizado por muitas pessoas trans para se denominarem. 

Há diferentes formas de nos nomearmos. Travesti, transmasculino, transfeminina, não-binárie, homem transexual, mulher transexual, homens trans, mulher trans, transvestigenere, transgênero, transexual  são algumas delas. 

Hoje sabemos que há muitos caminhos para a transgeneridade e muitos nomes para nossas identidades.  Preste atenção em como falamos de nós mesmes e lembre-se:

Ser uma pessoa trans é ser uma pessoa que não se identifica com o gênero designado ao nascimento. 

 A travestilidade e o DSM

O DSM-5 falha quando tenta nos nomear e quando deixa de apresentar as  especificidades das travestis. O manual tem uma categoria identificada como “travestismo” que se refere ao chamado “cross-dressing”, popularmente conhecido no Brasil, entre as travestis, como cdzinha – uma abreviação do termo em inglês. 

Não entendeu? Cdzinhas são normalmente homens cisgêneros que se feminilizam com  roupas, acessórios e comportamentos tidos como femininos com intuito sexual. O que o DSM-5 chama de travestismo é uma montação como fetiche. 

Agora para e pensa. Muitas pessoas já  acham que travestis não são mulheres “de verdade”; além disso, temos  um manual da medicina que reafirma   travestismo como uma prática com conotação sexual, ou seja, um fetiche. Sendo assim, precisamos não só  mudar o sufixo “ismo” de um termo, mas também alterar seu  sentido porque ele reafirma a noção de que travestis não estão dentro do que podemos entender como diferentes mulheridades. 

No fim, essa é mais uma ferramenta usada para desumanizar e negar a existência das pessoas que sempre estiveram à frente do movimento LGBTI. O que é chamado de “cross-dressing” nem deveria estar relacionado à transgeneridade porque ele não é uma identidade trans.

CID 

O manual CID também apresenta um histórico de patologização de pessoas trans. Neste manual , pessoas trans foram incluídas no capítulo de “transtornos de identidade sexual” até a sua décima versão. A travestilidade também é considerada um fetiche, como no DSM.

Até o momento, há  11 versões da CID, mas a transexualidade foi inserida a partir da oitava versão como:

  • CID-8 – Tansvestismo (1965)
  • CID-9 – Transvestismo foi mantido (1975)
  • CID-10 – Transtorno de Identidade de Gênero (1990)
  • CID-11 – Incongruência de Gênero (2018)

A CID-11 traz uma mudança tardia, porém essencial no acesso à saúde por pessoas trans. Não somos mais consideradas pessoas com transtornos mentais. Agora estamos inserides no capítulo “Saúde Sexual”. Essa nova versão foi lançada em 2018, no entanto, os países ligados à OMS têm até 2022 para se adequarem .

Tanto no DSM como nas versões da CID que patologizavam a transgeneridade, um dos critérios para tal era o sofrimento psicossocial vivenciado por pessoas trans em uma sociedade que nos vê como aberrações. A CID-11 rompe com isso e define seus critérios a partir das experiências de pessoas trans  – adultos, crianças e adolescentes – e sobre o conhecimento que elas têm sobre si mesmas. 

A CID-11 não trata  a transgeneridade como  “disforia de gênero” e nos apresenta  como pessoas que podem vivenciar uma “incongruência de gênero” em relação ao que é determinado no nascimento.  Essa “incongruência” pode causar sofrimento em nós e apontar para a falha do cistema, o qual  tenta normativizar corpos. 

Por isso, quando identificada, não devemos ser higienizades, mas sim obter acompanhamento multidisciplinar para que possamos nos entender e entender como a cisnorma nos molda, nos limita e nos violenta. 

Assim como a disforia, a incongruência não é um problema inerente a pessoas trans, mas sim à cisgeneridade enquanto um cistema. Não são apenas pessoas trans que contestam os limites do binarismo de gênero e sofrem por causa deles; pessoas cis também o fazem. 

Alinhada a CID-11, a resolução 2265/2019 do Conselho Federal de Medicina, CFM, determina que:

  • Crianças e adolescentes na pré-puberdade, com permissão do responsável, podem acessar acolhimento e acompanhamento por equipe multiprofissional e interdisciplinar para compreenderem melhor sobre si mesmas.
  • Adolescentes na puberdade, com autorização da equipe multiprofissional e do responsável, podem ter a possibilidade de bloqueio hormonal para não desenvolverem características sexuais secundárias do sexo biológico.
  • A partir dos 16 anos, é possível iniciar hormonioterapia após a avaliação da equipe e do responsável. 
  • Pessoas com 18 anos ou mais precisam ter acompanhamento médico interdisciplinar durante 1 ano antes de realizar diferentes cirurgias abarcadas no processo transexualizador do SUS. Antes da CID-11, era necessário 2 anos de acompanhamento e idade mínima de 21 anos para cirurgias.

A despatologização trans é uma questão de saúde pública

Nós pessoas trans não deveríamos estar no DSM. Deveríamos estar apenas na CID para que possamos ter acesso específico às nossas demandas de saúde. Entretanto, a portaria do SUS ainda não foi atualizada. Nosso diagnóstico e acesso a tratamentos ainda se dão pelas versões anteriores.

Para saber mais a respeito da patologização de pessoas trans presentes no DSM, na CID e também sobre o atendimento à população trans no SUS em Florianópolis – SC, indico a leitura da tese de doutorado de Ale Mujica. Ale é uma pessoa trans não-binárie e doutore em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. 

Pessoas trans são diagnosticadas pela medicina desde o fim do século XIX, e pelos  manuais psiquiátricos e médicos desde a década de 1960. Por isso, retomo o que disse no fim do primeiro texto da série:

A patologia não está em nós. A doença não está em nós. A doença está na cisnorma. A patologia está em achar que entre toda a população mundial existem apenas dois gêneros baseados em pênis ou vagina para se viver. A patologia está em achar que corpos trans precisam ser iguais a corpos cis para serem humanizados.

A cisgeneridade não é apenas uma identidade de gênero, ela é uma estrutura social que privilegia certos corpos e marginaliza outros.  

Não esqueça de continuar procurando mais informações sobre a cisnorma enquanto uma estrutura de poder. Repense sobre como a cisgeneridade afeta a vida de todes nós, pessoas cis e pessoas trans. Converse com seus pares. Todes precisamos fazer isso.

Gostou do texto? Compartilhe ele em suas redes sociais e nos ajude a levar essa discussão adiante! 

Você também pode apoiar locais que acolhem pessoas LGBTI+ na plataforma da Nohs Somos. Inscreva-se aqui!

Um beijo cheio de acalanto e prosperidade travesti para você que chegou até aqui. Até o próximo – e último – texto da série, em que iremos discutir alguns dos efeitos da patologização trans em nossas vidas tão diversas. Não perca!

Texto por Ti Ochoa
Arte por Luan Gonzatti

Referências:

Portaria do Processo Transexualizador no SUS
Tese de Doutorado de Ale Mujica (2019): Cartografias de cuidados à saúde trans na Atenção Primária do município de Florianópolis, 2017 – 2018.
Patologização Da Transexualidade: Uma Leitura Crítica Das Transformações Ocorridas Nas Três Últimas Versões Do Dsm
Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual (1910-1995)
DSM-5
Ser trans não é doença: primeiro texto da série.
https://unaids.org.br/2018/06/oms-anuncia-retirada-dos-transtornos-de-identidade-de-genero-de-lista-de-saude-mental/
OMS anuncia despatologização das pessoas trans

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