No primeiro texto da série, falamos sobre o Dia Internacional da Despatologização Trans. No segundo, analisamos dois manuais médicos, o DSM e a CID, para pensarmos o que a medicina tem a ver com isso. Neste terceiro e último texto da série, discutiremos alguns dos efeitos causados pela patologização trans em nossas vidas. Ser trans não é doença, mas foi/é considerado e tratado como tal por mais de 65 anos pela medicina.
Falarei apenas de alguns dos efeitos, afinal, não é possível saber de todos. Os sofrimentos causados não são apenas estruturais, mas também individuais e têm inúmeras subjetividades.
Acesso à saúde e racismo
A patologização está relacionada à desumanização e pode ocorrer por diferentes motivos e em diferentes áreas da sociedade, não apenas na área médica. É importante dizer que uma pessoa trans nunca é só uma pessoa trans e possui outros marcadores sociais que a posiciona mais ao centro ou mais à margem da sociedade.
O atendimento à saúde já é dificultado para pessoas trans brancas que usam o SUS. No caso de pessoas trans negras e indígenas isso é ainda mais dificultado uma vez que a branquitude opera de uma maneira tão nojenta e tão racista que nega tratamento adequado e acesso a muitas pessoas racializadas, cis ou trans. Não são poucos os casos de racismo dentro de unidades básicas de saúde e hospitais.
Para além do racismo institucional dentro do SUS, também é necessário lembrar que muitas pessoas trans negras e indígenas são tão marginalizadas socialmente que muitas vezes não conseguem chegar até o SUS para obter atendimento e acolhimento. Quando (e se) chegam, podem se deparar com pessoas despreparadas para atender suas demandas.
É essencial racializar questões trans para não cairmos mais uma vez em uma homogeneização das identidades.
Ser trans não é doença, mas por que continua sendo tratado como?
Na área da saúde, pessoas trans são frequentemente tidas como doentes. Por mais que exista uma portaria regulamentando o uso nome social para o atendimento específico da nossa população, muitas vezes não recebemos tratamento e acolhimento adequado.
Como você se sentiria se as pessoas se recusassem a te chamar pelo seu nome e seu pronome de verdade?
Constantemente, não sabem como nos chamar, como perguntar nossos nomes, quais pronomes usar, como ver identidades trans para além do binarismo de gênero e como nos ajudar.
Sofremos com o fato de muitos agentes de saúde, atendentes, enfermeiros, médicos, entre outros profissionais, não respeitarem o nosso direito ao nome social. Para muitas pessoas trans não retificadas isso se torna um sofrimento muito grande. É comum até mesmo em casos que o nome social é inserido no sistema, ele ser ignorado e pronunciado em alto e bom som para todo mundo na unidade de saúde ouvir.
Falsas narrativas e invalidação
Forçadamente, criamos falsas narrativas sobre nossa transgeneridade porque se ela não bater com o esperado pela medicina, o nosso tratamento e acesso à saúde pode ser negado.
Muitas vezes temos dúvidas sobre hormonioterapia ou outros procedimentos referentes à transição. Existem poucos profissionais realmente dispostos a nos entender, nos atender e nos acolher. Acontece muito de sermos atendides em Ambulatórios Trans ou Unidades Básicas de Saúde e sairmos com mais dúvidas do que chegamos e com um sentimento de ter algo errado conosco.
Acontece também de outras vezes termos mais conhecimento sobre terapias hormonais e como elas funcionam em nossos corpos do que as equipes médicas que nos atendem. Obviamente, quando tentamos argumentar e mostrar que sabemos do que estamos falando, somos desqualificades porque não estudamos medicina formalmente.
Essas relações com hospitais e unidades básicas de saúde são mais uma maneira reafirmar que não somos quem dizemos ser de verdade, mas sim farsantes. Que não somos normais. Que não temos conhecimentos sobre nós mesmes. Que não merecemos respeito, quem dirá tratamento e acolhimento humanizados.
Recomendei no segundo texto da série e recomendarei de novo. Leiam e divulguem a tese de doutorado de Ale Mujica, doutore em Saúde Coletiva pela UFSC. A tese se chama Cartografias de cuidados à saúde trans na Atenção Primária do município de Florianópolis, 2017 – 2018. Pessoas cis da área da saúde precisam nos ouvir e aprender conosco!
A questão da saúde mental
Não é incomum que pessoas trans em períodos diferentes de transição pensem que estão loucas. Isso acontece dentre muitos motivos pela patologização dos nossos corpos na esfera médica, na esfera midiática e em outras esferas da vida social. A patologização não envolve somente uma área, ela tem efeitos em todo o imaginário cultural.
Para quem é da área da psicologia, deixo duas recomendações de leitura:
- O livro Pajubá-Terapia: ensaios sobre a cisnorma, escrito pela travesti psicóloga Sofia Favero.
- O livro Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia.
Nos dizem e nos reforçam isso de tantas formas que muitas vezes duvidamos de quem somos, pensamos que estamos no corpo errado, nos machucamos psicológica e fisicamente e algumes de nós são suicidades.
Todo o nosso sofrimento vem de uma sociedade que ensina que ser algo diferente de homem com pênis e mulher com vagina é errado, é grotesco, é doentio, é uma aberração, uma farsa. A ideia de que nascemos num corpo errado é reforçada constantemente pela cisnormatividade.
Clica aqui que você vai poder acessar uma análise detalhada desse sistema escrita por Viviane Vergueiro, uma travesti babadeira daqui do Brasil.
Não nascemos no corpo errado, nascemos em uma sociedade transfóbica.
Como essa noção impera em todas as áreas da sociedade, com frequência também nos falta acolhimento e apoio dentro das nossas até então ditas famílias, que muitas vezes acham que somos loucas e nos expulsam, nos violentam e até nos assassinam. Também somos estruturalmente expulses do ambiente escolar e muitos dos nossos direitos humanos básicos nos são negados.
A doença não está em nós
Nesta série de posts, abordamos os cenários em que a patologização das identidades trans ocorrem, além de como os efeitos podem ser sentidos até hoje. A medicina colabora com esse problema quando reforça essa visão errada e não se dedica a tratar pessoas trans de forma humanizada. Podemos perceber ao longo dos textos que a verdadeira doença está na cisnorma que estabelece uma normatização do que as pessoas deveriam ser baseadas em seus sexos biológicos, em manuais de uma medicina que durante muito tempo julgou e julga quem deveria acolher.
E aí, gostou do texto? Gostou da série? Fala com a gente se você tiver críticas, sugestões, dúvidas, coisas para adicionar. Compartilhe esse texto em suas redes sociais. Bora continuar levando essas discussões pra frente!
Você pode apoiar locais que acolhem pessoas LGBTIs na plataforma da Nohs Somos: avalie locais! Além disso, se você deseja tornar seu espaço de trabalho mais inclusivo, entre em contato agora com um de nossos consultores clicando aqui!
Obrigada por acompanharem até aqui, um beijo cheio de prosperidade e acalanto travesti pra vocês!
Texto por Ti Ochoa
Revisão por Domenique Rangel
Arte por Luan Gonzatti
Organização por Marianna Godoy