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Travestis Negras: conheça a história das parteiras do movimento LGBT

O mês do orgulho passou e o que você aprendeu sobre travestis negras? A história sobre Stonewall que lhe contaram falava sobre as travestis Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera? E você também conhece e valoriza a luta das travestis brasileiras?

Recontando a história do movimento LGBT

O escritor e jornalista inglês George Orwell (1903-1950) destaca que a “história é contada pelos vencedores”. Seja no Brasil, na Europa, ou nos Estados Unidos, é sempre a versão contada por homens brancos, cisheteronormativos, cristãos, burgueses, urbanos e sem deficiências que a história é contada. Não necessariamente estes são os vencedores. Mesmo que aqueles que estão à margem vençam algumas batalhas, a versão do grupo socialmente hegemônico prevalecerá.

Esse texto é um convite para que possamos olhar a história do movimento LGBT tentando reposicionar as travestis, em especial as negras, em seus lugares de protagonismo. Denunciando o apagamento e invisibilização que perpassa as corporalidades de travestis negras, que tanto nos EUA, como no Brasil, desde a Colônia, desafiaram os padrões cisheteronormativos e estiveram na linha de frente da resistência.    

Entre pedradas e apagamentos: as travestis de Stonewall

Stonewall Inn é o nome do bar localizado no bairro do Greenwich Village, em Nova York, frequentado por lésbicas, travestis, drag queens e gays. No início da década de 1960, os EUA passam por um processo de descriminalização das “relações homossexuais”, contudo, se na letra da lei, a liberação estava autorizada, as práticas policialescas de vigilância, controle e punição, perpetradas pela polícia, braço forte e necropolítico do Estado, ainda se faziam presentes. Apesar dos proprietários do bar Stonewall Inn pagarem propina para as milícias, a rotina de batidas policiais era constante. 

Na madrugada de 28 de junho de 1969, a comunidade LGBT, cansada da excessiva violência, responde com palavras de ordem e pedradas à operação policial. Na linha de frente, a travesti negra Marsha P. Johnson e a travesti latina Sylvia Rivera. Entre as muitas versões da história, Marsha e Sylvia teriam sido as primeiras a arremessarem pedras. Mas, a versão da história que se populariza vai abordar a “Rebelião de Stonewall” como o início do “movimento gay”, uma expressão que deixa evidente o apagamento das corpas travestis.

O perigo da universalidade é sempre produzir apagamentos. A linguagem é um componente estruturante de nossas relações. O que não é nomeado é menosprezado, desvalorizado, esquecido, apagado. Nomear é um ato político de reconhecimento. Ao nomearmos um movimento diverso com a participação de variadas identidades sexuais e de gênero como “movimento homossexual” ou “movimento gay”, se exerce uma ação política excludente. A forma sintética de nomeação não foi um ato ingênuo ou desproposital.

Nos anos que se seguem a 1969, o “movimento homossexual” irá eleger como sujeito político de suas reivindicações o homem gay ciscentrado, branco. Descrever esse sujeito identitário com tais características é bastante importante. Não irei subestimar o poder da linguagem. Por certo, em minha caracterização do sujeito político do “movimento homossexual”, eu poderia utilizar apenas o termo gay, omitindo homem, contudo, tal sujeito irá supervalorizar uma performance de gênero rigidamente masculina em detrimento de “comportamentos femininos”, que serão marginalizados dentro da comunidade.

A caracterização a partir do termo cisgênero também é relevante, pois a performance de gênero masculina desses homens gays encontra uma suposta consonância com o sexo dito biológico. A masculinidade homossexual vai reproduzir os padrões cisheteronormativos. É importante compreender que a heterossexualidade não é apenas uma orientação sexual, é um regime de poder, como demarca a feminista lésbica Monique Wittig.

Assim também, compreendo a cisgeneridade a partir da transfeminista brasileira, Viviane Vergueiro, não como um atributo da heterossexualidade. É antes uma denúncia ao modo pelo qual certas identidades entendem a si mesmo como naturais, como um desenvolvimento harmônico que emana de seus órgãos sexuais, numa relação de reciprocidade entre “sexo” e “gênero”. Portanto, não é incoerente denunciar que o modo como o “movimento homossexual” se articula após 1969 é cisheteronormativo. 

Além disso, a experiência do sujeito político do “movimento homossexual” assumirá um padrão racista. Nesse ponto, é bastante importante demarcar que Marsha era negra e que Sylvia, apesar de não ser negra, era latina. A ideia de supremacia racial branca erguida nos EUA se constrói a partir de uma política de subalternização de negros e negras, mas, que também passará a incluir a comunidade latino-americana. Portanto, o apagamento de Marsha e Sylvia atende duplamente a interesses racistas. 

Entende-se que a negociação que o “movimento homossexual” fez, e infelizmente ainda faz, com a cis/hetero/branco/normatividade é um resultado estrutural dessas opressões. O mundo é organizado a partir dos interesses de corpos cisheterossexuais e brancos, parece que este é o único modo de viver nossas sexualidades. O que leva parte dos homossexuais a espelharem seus desejos nestes padrões, tais como: relacionamento monogâmico, casamento, masculinidade tóxica e valorização da estética branca.

Acredito que um movimento LGBT revolucionário estaria mais empenhado em criar outros modos de ser/estar no mundo, do que estabelecer perigosas relações com a cis/hetero/branco/normatividade. Mas, esta é outra discussão que deixaremos para depois. O que o movimento LGBT precisa é reconhecer o processo histórico de apagamento das identidades travestis, recuperando o potencial transgressor da resistência de corpas que transgridem com os padrões de gênero e sexualidade.

Marsha e Sylvia travestis pioneiras

O movimento LGBTI+ precisa compreender inclusive Marsha e Sylvia como travestis. Não é um anacronismo histórico. É um reconhecimento político.

Considera-se o termo travesti como uma categoria própria latino-americana, por tanto, não há tradução para outros idiomas. Por isso, justifica-se a tradução livre como uma correlação, e não uma tradução no sentido estrito da palavra.

As próprias Marsha e Sylvia deixam as pistas pelas quais podemos entender que as nomeações gays e/ou drag queens são precárias para suas performances. Ambas fundaram a Street Transvestite Action Revolutionaries (S.T.A.R) – o termo Transvestite pode ser livremente traduzido como travesti, pois, possui uma raiz histórica similar.

Inicialmente, o “travestismo” era uma prática pela qual homens se vestiam de mulheres, entretanto as travestis emergem aos poucos como identidade de gênero, rompendo com a ideia de fantasia. Ser travesti não é uma representação do “gênero feminino” é uma identidade. As mulheres não são femininas por natureza, assim como as travestis também não, ambas constroem suas feminilidades atravessadas por inúmeros discursos. Reconhecer Marsha e Sylvia como travestis é compreender os processos históricos de resistência que possibilitaram a emergência das identidades de gênero travestis. 

A S.T.A.R era uma casa de acolhimento para jovens LGBTs mostrando que as travestis desde o início do movimento se ocuparam em construir políticas inclusivas. Ao se colocarem na linha de frente, Marsha e Sylvia são verdadeiras parteiras do movimento LGBT. Essa é a nossa ancestralidade travesti: resistir, romper a normatividade dos espaços públicos. As corpas travestis publicizam suas dissidências num ato revolucionário. Afinal, as ruas pertencem às travestis. Habitar a rua e demais espaços públicos com nossas performances dissidentes é aprender a viver perigosamente.  

Afro+Trans+Ancestralidade brasileira

É das ruas que a Afro+Trans+Ancestralidade brasileira emerge. É no espaço público que a travesti faz da corporalidade, da roupa, de seus movimentos ferramentas de contestação às cisheteronormatividades. E é nas ruas da cidade São Salvador da Bahia de Todos os Santos que Xica Manicongo desfila audaciosamente vestida com as roupas que considera adequadas para sua performance de gênero. 

De acordo com a professora transfeminista Jaqueline Gomes de Jesus, Xica Manicongo é o nome pelo qual o movimento de travestis celebra a existência ancestral de uma africana do Congo escravizada e vendida a um sapateiro e batizada como Francisco, e assim reconhecida até ser descoberta pelas suas. Sua existência emerge a partir dos registros históricos das visitas que o Santo Ofício realizou ao Brasil em Salvador no ano de 1591.

Na ocasião, Xica Manicongo foi acusada do crime de sodomia. A mesma não se vestia com “trajes masculinos”, como o esperado pelo ordenamento cisheteronormativo. Andava coberta com um pano que prendia com o nó para frente, à moda dos quimbandas, indicando que servia de “mulher paciente”, servia aos homens “como mulher”, o que a Igreja Católica e o código penal vigente consideravam como sodomia, um pecado mortal, crime nefando que se punia com morte na fogueira.  

Para que não fosse morta, Xica Manicongo teve que abandonar os trajes femininos ao estilo do Congo pra vestir-se ao estilo tradicional para os homens da época. Atualmente, Xica Manicongo é celebrada como primeira travesti negra do Brasil com registros históricos. Outras travestis, ou experiências que dialoguem com essas identidades de gênero, devem ter existido, entre os indígenas e afrodescendentes, entre essa gente brasileira, contudo, a ausência de registros e pesquisas nos impossibilita conhecê-las.  

Se precisamos reconhecer o protagonismo das travestis Marsha e Syvia, é necessário também lançar um olhar sobre a história do movimento LGBT brasileiro e de nossas resistências. Afinal, antes da organização institucional e política do movimento LGBT existiram processos de resistências que precisam ser reconhecidos e valorizados. Xica Manicongo é símbolo de que as travesti negras nesse país sempre estiveram na linha de frente da resistência desse país e permanece viva em nossa Afro+Trans+Ancestralidade brasileira.

O movimento social organizado de travestis e transsexuais nasce no Brasil

O mesmo processo experienciado pelo movimento LGBT nos EUA pode ser observado no Brasil. O Grupo Somos fundado em 1978, primeira organização nacional dessa natureza, adotou uma postura excludente e não permitia a participação de gays afeminados e travestis. Vale lembrar que durante a ditadura militar, travestis e gays afeminados eram alvos de operações policiais específicas, como a Operação Tarântula. Entretanto, a militância irá se ocupar com demandas do sujeito político “por excelência” do movimento LGBT: o homem gay ciscentrado branco. 

A travesti negra Jovanna Cardoso relata que as travestis possuíam um severo descontentamento com o Movimento Homossexual Brasileiro. A vida ensinou a nordestina que resistir não era uma opção, mas, sim, uma estratégia de sobrevivência. Expulsa de casa aos 13 anos, Jovanna parte para a capital do Espírito Santo, fazendo das ruas seu lugar de trabalho. No ano de 1979, ainda em Vitória, a travesti negra participa da fundação do grupo Damas da Noite, entidade de prostitutas cisgêneras e travestis que nasce para denunciar a ação violenta da polícia exigindo direitos.

 Na década de 1980, Jovanna começa a morar na cidade do Rio de Janeiro e novamente passa a enfrentar repressões policiais. As aprendizagens que a nordestina teve no ativismo social em Vitória foram fundamentais para que no ano de 1992 juntamente com Beatriz Senegal, Elza Lobão, Josy Silva, Monique Du Bavieur e Claudia Pierry France no ano de 1992, fundassem a ASTRAL, a primeira organização de travestis do mundo. Essas 6 guerreiras precisam ser reconhecidas pelo movimento LGBTI+ brasileiro, elas são as fundadoras do movimento social e político organizado de travestis e transsexuais no mundo. Inclusive, Jovanna Cardoso, Beatriz Senegal e Josy Silva, estão vivas e precisam ser celebradas.  

Josy Silva ainda está viva, mas, atualmente não possuímos contato com ela.

Jovanna atualmente é presidenTRA do Fórum Nacional de Travestis e Transsexuais Negras e Negros (FONATRANS), desde a década de 1990 configura-se como uma das principais lideranças do movimento trans brasileiro. 

Beatriz Senegal, atualmente mora na Barcelona, Espanha, já foi capa de revistas, calendários e reportagens, com títulos marcantes como “O Reino das Cafetinas” e a “Camaleoa Invencível”, que denotam a força da resistência da carioca. A cofundadora do movimento travesti no Brasil continua representando a ASTRAL em atividades políticas na Europa, militando inclusive contra o tráfico internacional de mulheres e travestis para a prostituição.

Se os EUA têm Marsha e Sylvia, nós temos Jovanna e Beatriz, temos também Elza Lobão, Josy Silva, Monique Du Bavieur e Claudia Pierry France e tantas outras. 

O silêncio não nos protege: travestis negras contando suas histórias 

A feminista negra latino-caribenha Audre Lorde nos ensina que o silêncio não nos protege. Por isso, é necessário que ergamos nossas vozes e rompamos com a invisibilização de nossas histórias. Nós travestis negras temos trajetórias de resistência que precisam ser conhecidas dentro do movimento LGBT. É necessário aprender com as diferenças. Os homens gays ciscentrados brancos, que, apesar de vivenciarem violências, possuem acessos diferentes aos das travestis podem ser importantes, rompendo a segregação que foi imposta outrora. 

Nós, travestis negras, queremos que nossos protagonismos sejam reconhecidos e celebrados. Se nos colocamos na linha de frente da resistência é porque também são nossas vidas que estão no front de batalha, são travestis negras que mais morrem. Os dados da ANTRA indicam que eram pessoas negras 82% dos casos de transfobia letal no ano de 2019. Por isso, se torna tão importante celebrar não apenas as nossas histórias, mas, celebrar também a esperança que nos permite desejar e lutar pelas nossas vidas. 

Contar e ouvir nossas histórias nos permite sonhar. Quando escuto as vozes de Jovanna e Beatriz, a quem tenho como amigas, meu coração se enche de força e esperança. É preciso cuidar da raiz para que possamos florir. Sem raiz não há fruto, não há flor. É preciso que repitamos esses nomes, que contemos essas histórias para que elas não caiam nas malhas do esquecimento.

Nós, travestis negras que começamos a ocupar lugares antes inimagináveis, somos filhas da ancestralidade de Xica Manicongo; herdeiras da força de Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera; e sucessoras dos sonhos de Jovanna Cardoso, Beatriz Senegal, Elza Lobão, Josy Silva, Monique Du Bavieur e Claudia Pierry France. Viver e resistir é um modo de celebrar as memórias de nossas irmãs travestis negras. A porta foi aberta por elas, nós precisamos seguir fazendo o caminho, seguir caminhando. Xica Manicongo vive!

Texto por Letícia Carolina, Doutoranda em Educação pela UFPI. Trans
Arte por Ariely Suptitz

0 resposta

  1. Que coisa maravilhosa de se ler…eu quero viver 200 anos depois de ler tamanha grandiosidade. Nunca fui homenageada nesse país. Obrigada Letícia e a NOHS SOMOS!

  2. Não podemos esquecer as Travestis negras que criaram o movimento gay e mais tarde a ASTRAL, nós devemos seguir em frente com coragem, a caminhada para que possamos atingir por direito próprio todos os direitos e privilégios, para a toda comunidade LGBTIQ+ em todo o Mundo tal como os heterossexuais têm em todos os Países.

  3. Estou até agora muito feliz com essa leitura das histórias de resistências negras dessa pessoas LGBT, o apagamento de nossas histórias são propositais, para que nunca nos fortalecemos a partir de referências negras.
    Gratidão por você fazer parte deste lugar de nossas escrevivencias.

    1. Oi Veronica! Que bom te ter por aqui e que você curtiu a leitura!

      Um grande abraço de todos nohs aqui da Nohs Somos!

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