O país que mais mata travestis é campeão em consumo de pornografia trans! E você? Já sentiu atração ou namorou travestis? Você beija travestis em público?
1. Entre a abjeção e a erotização: travestis e o não-ser
As corpas de travestis estão sempre transitando entre a abjeção e a erotização o que nos impossibilita de sermos compreendidas como seres humanos. Um processo constante de objetificação de nossas existências é implementado por instituições cisheteropatriarcais: medicina/psicologia, as igrejas cristãs, o Estado, mídia e a família.
Objetificadas, nós travestis somos compreendidas não como um “ser”, como um objeto sujo e desprezível; e/ou como um objeto alvo de um desejo lascivo, pecaminoso e imoral. De ambos os modos, a dignidade humana nós é extraída. Pensando a categoria gênero a partir do existencialismo da filósofa francesa Simone de Beauvoir, entendo que as travestilidades são colocadas em um “não-lugar existencial”. O processo de objetificação a partir do olhar do Ser Colonial (homem, branco, cisgênero, heterossexual, cristão e burguês) produz em nós travestis, parafraseando o psiquiatra negro martinicano, Frantz Fanon, uma completa bestialização de nossas existências.
Somos pensadas como outreridades: a margem da matriz dominante, não temos acesso a humanidade pois nossas corporalidades assumem dentro do CIStema colonial de gênero uma condição objetificada e animalesca.
2. O conceito abjeção em Judith Butler
A partir de Judith Butler podemos entender por abjetas as corporalidades que não estão dentro dos códigos de inteligibilidade humana. Portanto, a abjeção em Butler não se relaciona apenas aquilo dentro de uma normatização de gênero e sexualidade historicamente tem sido compreendido como “anormal”. Todas as corporalidades que não assumem um valor de “vida importante” são abjetas.
As travestis encarnam em seus processos de materialização a abjeção. As corporalidades cisheterossexuais ao passo que se delimitam como normais colocam a margem uma série de performances de gênero e experiências sexuais demarcadas como patológicas, imorais, pecaminosas e criminosas. Uma corporalidade abjeta não é digna de afeto, é preciso entender a abjeção não apenas como uma política que demanda um extermínio físico de travestis.
Em uma dimensão afetiva, é importante ressaltar que uma vida abjeta é esvaziada de qualquer investimento emocional.
É sempre arriscado construir narrativas universalistas sobre nossas existências, mas, como travestis, muitas de nós desde a infância experimentam um forte medo de sermos rejeitadas, de não sermos amadas.
- A família que por vezes não nos entende, o medo de ser expulsa de casa, realidade comum para muitas de nós.
- Os amores na adolescência vividos de modo clandestinos, ou por vezes sufocados.
- As experiências sexuais geralmente rápidas e com objetivo de um gozo momentâneo.
- A insegurança com o próprio corpo, o choro constante quando olhamos pro espelho tentando encontrar qualquer fagulha de amor próprio.
- A falta de representatividade e imagem repetidamente caricatural presente nas mídias.
- A condenação moral e religiosa, as tentativas de diagnósticos médicos/psicológicos.
Ser travesti, ser uma vida abjeta é mais do que ser um alvo mortal de políticas de extermínio é crescer aprendendo a caminhar é uma corda bamba emocional.
Medo de não ser amada, respeitada, acolhida, medo de floreS(c)er.
- É sentir internamente acender um desejo de ser alguém que não possui relação ao que esperam e exigem de nós.
- É por vezes não encontrar formas de dizer e viver esse desejo.
- É ser punida, humilhada, agredida cada vez que esse desejo minimamente toma forma em nós.
- É ser piada, escárnio público.
Ser abjeta é não ser digna de amor, não ser amada e também uma forma de nos matar.
3. A pornografia como tecnologia sexopolítica em Paul B. Preciado
O filósofo espanhol Paul B. Preciado apresenta a pornografia como uma tecnologia sexopolítica que produz midiaticamente uma discursividade sexual que governa as corporalidades. Como tecnologia sexopolítica a pornografia modela os nossos desejos, os modos como atingir o gozo, o prazer é governado.
O filósofo francês Michel Foucault refuta a “hipótese repressiva” entendendo que há desde o século XVIII uma intensa produção discursiva sobre o sexo, mas, uma produção supostamente legítima promotora de uma economia do corpo e dos prazeres. A partir de Foucault, o pós-feminista punk Preciado investigara como no século XX a pornografia (e a mídia de modo geral) irá se inserir nesse processo de produção discursiva sobre o sexo numa dimensão biopolítica.
As travestis aparecem na mídia despidas de qualquer humanidade: em programas televisivos, novelas e filmes como “homens que imitam mulheres” e na indústria pornográfica como fetiche: um objeto de desejo. A pornografia, assim como a prostituição, insere as travestis ao espaço exterior aos núcleos familiares cisheteropatriarcais, é um modo dos honoráveis pais de família satisfazerem seus desejos clandestinamente sem comprometer o sagrado sacramento do matrimônio.
A diaba travesti brasileira Urias canta: “Não consegue ver, que da sua família eu sou pilar principal”. Muitos casamentos “felizes” duram anos graças ao gozo proporcionado pela fetichização das travestis.
Como uma tecnologia sexopolítica a mídia e a indústria pornográfica demarcam a travestilidade como algo estranho, avesso, dissidente à normatização cisheteropatriarcal. As representações de travestis na mídia produzem majoritariamente riso e gozo, não há qualquer preocupação em fazer com que tenhamos sentimentos dignos de empatia.
Somos uma mera representação do não-ser, outreridades alheias a humanidade.
4. Nem homem, nem mulher, apenas uma gozada rápida!
Nós travestis somos reduzidas a objetos de desejos, corporalidades para a satisfação sexual, nossos sentimentos são ignorados. Na tela de um celular ou num beco escuro qualquer um mero desejo. O Brasil é o país que mais consome pornografia travesti no mundo, paradoxalmente é também o que mais mata travestis. Entre o desejo e a abjeção, nossas corpas não são dignas de afeto, portanto, após servirem aos prazeres dos senhores cisheteropatriarcais podemos ser descartados.
Ser homem, mulher, homossexual, viado, transformista… essa confusão na qual se insere as identidades travestis é reflexo da impossibilidade da constituição de nós mesmas como um Ser é sempre necessário fazer referência a identidades outras numa perspectiva subalterna de nossas corpas. Dentro de um CIStema mundo cisheteropatriarcal não é necessário entender se travestis são homens ou são mulheres, somos apenas uma gozada qualquer. É por isso que não há qualquer tipo de investimento afetivo para com travestis, pois, servimos a interesses estritamente sexuais.
Quando um homem possui interesse em uma travesti ele geralmente não a convida para ir a uma sorveteria, assistir um filme no cinema, se encontrar em um shopping esse tipo de paquera não faz parte dos rituais de relacionamentos entre homens cisheterossexuais e travestis. Encontros com travestis são sempre em lugares reservados: “tudo no CISgilo, tudo no CISquema!”. Nós travestis não somos dignas de afetos públicos.
Concordo com a educadora transfeminista Ana Flor Fernandes: “Nenhum homem medíocre merece ser amado por uma travesti!”.
TRA-VE-QUEI-RO s. m. (neol.) Pessoa que procura insistentemente travestis com intenções exclusivamente sexuais.
O termo travequeiro é um neologismo usado por nós para identificar homens que possuem essa fixação sexual em nossas corporalidades.
- Usualmente mandam mensagens pelo Instagram ou Facebook do tipo: “oi, você é linda”.
- Pedem nudes e insistem em realizar chamadas de vídeo.
- Enviam fotos suas mesmo sem qualquer solicitação de nossa parte.
- Perguntam incisivamente sobre nossos genitais, manifestando curiosidade pela forma, tamanho e os modos pelos quais os usamos.
- Usam perfis falsos, as vezes não, mas, exigem confidencialidade, pois, não podem comprometer suas masculinidades cisheteropatriarcais.
5. Eu sou transfóbico por não namorar travestis?
Essa é a pergunta de um milhão de lojôs, pergunta recorrente em conversas e debates, geralmente com defesas homéricas que insistem em afirmar que cada um tem um gosto e etc. Importante destacar de modo contundente que a transfobia inserida dentro das questões de gênero e sexualidade é um problema estrutural.
Por isso é muito arriscado personalizar o debate em torno do “meu gosto” ou do “seu gosto”. Até parece ser possível facilmente transcender todo um CIStema mundo cisheteropatriarcal para exercer nossos gostos de forma livre e autônoma.
Todos, todas e todes somos transfóbiques visto que somos educades em um CIStema mundo cisheteropatriarcal que nos impede de investir afetos em travestis e pessoas trans de modo geral. Somos criados de modo a não considerar ter travestis como filhas, irmãs, primas, tias, noras, amigas, colegas de trabalho, professoras, patroas, namoradas, esposas e etc. As pessoas geralmente crescem sem nenhuma ou pouquíssima interação conosco ou representatividade positiva de nós.
Ao invés de indagar-se simplesmente sobre a fato de você não desejar namorar travestis poderíamos ampliar a pergunta para pensar: por que eu tenho convivido com tão poucas travestis em meus ciclos sociais (pessoais, familiares, profissionais e afetivos)?
Precisamos refletir e combater a transfobia entendendo-a como uma questão estrutural, nesse processo é fundamental ampliar a representatividade de travestis. Aos poucos estamos tendo acesso as universidades, a cargos públicos e políticos, empregos formais, mas, ainda somos poucas transitando nesses espaços.
- Quantas amigas travestis você tem?
- Você leva suas amigas travestis pra apresentar em festas familiares?
- Quantas travestis você já ofereceu aulas de algo que você saiba como inglês ou informática?
- Quantas travestis você já empregou?
- Você liga e pergunta como elas estão, ou apenas posta foto com textão pra elas dizendo que apoia a causa trans?
Políticas TRANSafetivas: beije e abrace travestis em público
É bastante complicado crescer e viver em mundo que cotidianamente demarca que não temos lugar para existir. De fato, não nos sentimos seguras em nenhum espaço. Por isso é fundamental construir redes de apoio, empatia e solidariedade. Nem todo mundo gosta de beijo e abraço, mas, se você for dessas pessoas que gosta, não evite demonstrar publicamente afeto por nós.
Amar travestis não é namorar ou não conosco é fazer de nós pessoas importantes dentro de um regime que banaliza nossas existências.
Demonstrar afeto é mais do que abraço e beijinho, é se preocupar, é ter tempo pra ouvir sem julgar, sem minimizar nossos problemas.
- É acolher num abraço, num olhar, num simples aperto de mão.
- Mesmo sem ter nada pra dizer é estar presente.
- É incentivar nossos sonhos mesmo quando o mundo todo estiver contra nós.
- Colaborar quando possível em nossos projetos, e gritar “te amo” em um show nosso em uma boate qualquer ou aparecer com uma faixa de parabéns gigante no dia da nossa formatura.
Ter uma amiga é um presente se você for presente.
6. Solidão de travestis para além do sexo e do namoro
É importante insistir que falar da solidão de travestis não é apenas falar sobre sexo, namoro, sobre esse amor numa concepção romântica e burguesa. Nós travestis nos sentimos sozinhas quando sofremos uma transfobia e evitamos contar mesmo para pessoas próximas que vão dizer “deixa pra lá”, “você é mais forte do que isso”, ou ainda “eu acho que você tá exagerando!”.
Solidão é quando vemos fotos de amigos e amigas cis na balada ou em festas familiares e sabemos que não somos convidados por sermos travestis. Em várias situações nos sentimos sozinhas como destaca a travesti acadêmica de serviço social Sophia Rivera: é sentir-se sozinha no final do dia mesmo sendo admirada por outras pessoas.
7. Outros modos de amar…
Desafiando a soberania dos afetos cisheterossexuais muitas travestis têm explorado experiências afetivas e sexuais com outras pessoas trans e com mulheres lésbicas. Nisto, é importante compreender que a travestilidade é uma identidade de gênero, neste sentido, podemos vivenciar diferentes interações afetivas e sexuais.
Travestis são heterossexuais quando se relacionam com outros homens (cis ou trans). Podem ser lésbicas, bissexuais, pansexuais, assexuais. Podem ou não constituir famílias com filhos (adotivos ou não) ou mesmo casar. Outros afetos são possíveis, vamos nos permitir!
8. Autocuidado: uma política ética e estética transfeminista
Nós travestis também experienciamos um processo constante de aprendizagem de nós mesmas que nos permite cuidar e valorizar nossas corporalidades em uma dimensão estética e ética.
Aprender a amar o nosso corpo, entender quais as mudanças necessárias, nutrir-se de bons sentimentos, construir uma autoimagem positiva, aprender a lidar com os medos e inseguranças, enfrentar os olhares transfóbicos em lugares públicos, criar rotas minimamente seguras pra sair e voltar pra casa… um longo caminho de aprendizagem de nós para nós…
Nossas aprendizagens são diversas, pois, além da transfobia, numa perspectiva interseccional enfrentamos outros desafios…
- Relacionados ao racismo, quando somos negras,
- A gordofobia, quando não atendemos ao padrão estético magro,
- Ao capacitismo, quando somos pessoas com deficiências,
- Aos preconceitos regionais, quando somos do norte e do nordeste, do campo ou interior ou moramos em periferias;
Enfim… a caminhada é dificultada quando se entrelaçam outros fatores, devemos nos amar e sermos amadas em dobro, em triplo quando isso acontece. A psicóloga travesti pernambucana Céu Cavalcanti aborda o autocuidado como um processo de potencialização pessoal e coletivo de nossas existências dentro de uma política transfeminista.
Amar a si e amar umas as outras dentro de uma irmandade travesti é que nos faz permanecer vivas e fortes para enfrentar o CIStema.
Inclusive é que nos faz mesmos imersas em um mundo de horror sonhar com dias melhores, viver uma vida que honre nossas transancestrais e seguir abrindo o caminho pelas que já se foram, por nós que estamos e pelas que virão…
Axé!
Texto por Letícia Carolina Nascimento
Revisão por Domenique Rangel
Arte por Thadeu dos Anjos
Coordenação por Marianna Godoy