“Tod@s”, “todxs” ou “todes”? Entenda as razões por trás do uso de uma linguagem inclusiva.
“Tod@s”, “todxs”, “todes”. Essas convenções estão invadindo o nosso cotidiano, sobretudo nas redes sociais. Elas têm a ver com uma série de disputas de grupos desprivilegiados que identificaram a linguagem como uma das principais estruturas mediante as quais as opressões se reproduzem. Entenda aqui como o movimento LGBTI+ contemporâneo vem colocando a reivindicação por uma linguagem inclusiva de maneira bastante destacada no painel político.
É sabido que a linguagem não é mero reflexo da sociedade, mas uma dimensão da vida social que ajuda a organizar o mundo em que vivemos. É, portanto, também através da linguagem que estruturas sociais se reproduzem, algo que a linguística e a antropologia não nos deixam esquecer. Nesse sentido, a reprodução de opressões como o machismo, a LGBTIfobia, o racismo e o capacitismo, para citar algumas, passa pelos usos hegemônicos da língua.
Assim, tem havido muita ansiedade no debate público sobre diversidade com relação ao que seria uma linguagem “genuinamente” acessível. A pauta feminista denuncia o caráter sexista embutido em diversas expressões, assim como o movimento antirracista expõe a construção simbólica da cor “negra” como negativa e relacionada ao racismo cordial, o que nos faz ver com desconfiança termos como “lista negra”. A luta das pessoas cegas e com deficiência visual por uma linguagem inclusiva reverbera no uso cada vez mais comum da audiodescrição e da hashtag #PraCegoVer. Esse processo também repercute na presença cada vez mais comum de intérpretes de Libras em vídeos.
No caso do movimento LGBTI+, uma das principais formas de advogar por uma linguagem inclusiva vem sendo através do chamado “gênero neutro”, isto é, da crítica do “masculino genérico”. Historicamente, a língua latina possuía os gêneros masculino, feminino e neutro. Contudo, ela se transformou ao longo de séculos, e o gênero masculino passou a ocupar a função relacionada à neutralidade.
As interpretações mais recentes de estudiosos do gênero entendem o uso de um “masculino genérico” como uma forma de perpetuação, via linguagem, de uma gramática cultural sexista, mediante a qual o ponto de vista hegemônico é sempre o do sujeito masculino. Trata-se, assim, de uma linguagem cujo mínimo divisor comum é uma dissimetria de gênero.
Todas, tod@s, todxs, tod_s, todes…
A crítica ao “masculino genérico” está longe de ser nova. Por certo tempo, o jargão do movimento LGBTI+ foi atribuir a função de neutralidade ao gênero feminino, de modo a subverter essa estrutura, sugerindo uma reparação da linguagem sexista e deslocando a pretensa centralidade do masculino. Nessa proposta, seríamos sempre todas.
Mais recentemente, a própria binaridade dos gêneros implícita à língua portuguesa passou a ser questionada, não apenas por não ter um gênero neutro, mas porque não ofereceria recursos para representar pessoas transgênero, em especial aquelas que não se identificam de forma regular com um dos dois gêneros, como as pessoas não-binárias e agêneros.
Essa crítica à binaridade intrínseca à linguagem tem como horizonte a construção de parâmetros considerados mais representativos, como o gênero neutro, o que sugere que a organização da língua portuguesa de acordo com o gênero pode ser vista como anacrônica.
A utilização de recursos estilísticos para forjar o efeito de neutralidade passou a ser mais comum, como a arroba (@) e o xis (X), como em tod@s e todxs. A utilização dessas convenções remete tanto à ideia de representatividade geral sem a marca do gênero binário como à possibilidade de você substituir o gênero por aquele que mais conviria, como fica mais claro com a utilização do sublinhado (_) como em tod_s.
A utilização do e como substituto (como em todes) vem se consolidando como consenso. O uso do e tem a vantagem de facilitar a compreensão de pessoas cegas e deficientes visuais, pois pode ser lido compreensivelmente por aplicativos e softwares de leitura voltados para essas pessoas, além de ser um recurso menos abrasivo para a leitura de pessoas com dislexia. Tal postura vai ao encontro de uma tendência mais recente da linguagem inclusiva: a de se alinhar à luta anti-capacitista.
Há, contudo, outras alternativas que podem ser utilizadas com o mesmo fim. Uma vez atestado o poder da linguagem e a sua maleabilidade em termos sociais, ela vem se tornando um um campo de disputa não apenas entre conservadores e progressistas, mas também dentro do próprio campo das lutas feminista, transfeminista e anti-LGBTfóbica.
Mas quem se opõe à linguagem neutra?
Há quem argumente que a língua portuguesa já é aparelhada de recursos suficientes para uma comunicação neutra. O subtítulo acima seria um exemplo de alternativa que prescinde de pronomes generificados para comunicar algo. Nesse ponto, por exemplo, seguindo os exemplos dados por Rita Von Hunty (aqui e aqui), é possível trocar palavras generificadas como “aluno” ou “aluna” por “estudante”, que já é uma palavra neutra (assim como “diretora” e “diretor” podem ser trocadas por “dirigente” e por aí vai). Outra alternativa para designar os sujeitos é transferindo os papéis exercidos por eles para o substantivo “pessoa”. Ou seja, em lugar de “interessados” ou “interessadas”, é possível falar “pessoas interessadas” ou “com interesse”.
Há outros procedimentos, além da dita comunicação neutra, voltados para a inclusão na linguagem, tais como questionar e evitar expressões carregadas historicamente de opressões estruturais como o capacitismo, o racismo e a misoginia. Além disso, uma escrita cristalina e menos hermética também é importante, pois implica em ampliar o alcance de debates e informações em um país em que milhões de pessoas ainda são analfabetas funcionais.
Assim, para alguns, o “pronome neutro” seria apenas uma espécie de jargão político, e não poderia ser levado a sério como um projeto de reestruturação da língua portuguesa, mas como uma espécie de etiqueta dos movimentos sociais. Em lugar de pleitear uma renovação na Academia Brasileira de Letras, a reivindicação de uma linguagem inclusiva implicaria no cultivo de “bons hábitos” dentro da estrutura linguística atual.
Confira o vídeo da Rita Von Hunty sobre Linguagem Neutra.
O compartilhamento de uma linguagem comum, ademais, pode ser entendido também como um fator de integração entre pessoas LGBTI+. Associa-se, neste caso, a resistência aos vícios heterossexistas da linguagem hegemônica à aposta na utopia da linguagem plural como procedimento para favorecer processos igualitários, mais simétricos e democráticos. Vista desse ângulo, a linguagem neutra se aproxima da ideia de dialeto, assim como o pajubá, um “repertório vocabular e performativo” articulado a um senso de pertencimento coletivo de LGBTIs periféricos.
Todavia, a maior parte das críticas parece partir de um campo político que se afirma como antagonista ao movimento LGBTI+, e várias vezes está ligado ao pânico moral contra a assim batizada “ideologia de gênero”. Para esse campo político conservador (que não raramente flerta com o autoritarismo e o reacionarismo), a linguagem de gênero neutra seria mais uma ferramenta da ameaça que a “ideologia de gênero” representa aos valores fundamentais que são a família tradicional e a manutenção sexual de papéis de gênero heteronormativa.
Não raramente os conteúdos de pessoas não-binárias sobre língua neutra viram chacota para determinados grupos e, às vezes, chegam a mobilizar conflitos públicos, como debates sobre seu uso acadêmico e escolar ou projetos de lei proibindo sua utilização. A ameaça ganha contornos especiais quando é enunciada articulando a degeneração da língua portuguesa ao questionamento do gênero monolítico no âmbito escolar (já que, para essas ideologias, uma boa formação é linear e protegida de perturbações e vícios).
Tais conflitos deflagram a existência de um terreno árido de disputa. Se por um lado o tema da linguagem neutra ocupa cada vez mais destaque na cena pública, por outro isso ocorre às expensas de conflitos políticos, contradições internas e situações delicadas.
É possível separar linguística e política?
Se observarmos a escalada de conflitos em torno da proposta de uma linguagem neutra, facilmente podemos constatar que, independentemente do lugar que esse tópico deveria ou não ocupar na agenda política LGBTI+, o fato é que ele está no olho do furacão. O que está em jogo nessa luta são temas como representatividade, direito à autoafirmação e questionamento dos papéis de gênero tradicionais – e os termos em que essas questões são abordadas por diferentes vertentes políticas.
Se pudermos falar em conquistas, eu diria que o maior legado desse debate é que ele leva o tema da diversidade e da inclusão para lugares sociais muito relevantes. Empresas, organizações, instituições, corporações midiáticas e universidades são cada vez mais pressionadas a se posicionar com relação a determinados temas como a linguagem inclusiva, de modo que elas não podem mais se isentar de tomar certas decisões. Felizmente, grande parte dessas entidades vem se posicionando publicamente. O maior desafio é fazê-las incorporar uma cultura de boas práticas de diversidade e inclusão cotidianamente, em lugar de fazê-lo apenas em datas específicas (como o Dia do Orgulho LGBT).
Há consenso sobre a linguagem neutra? O pronome neutro tem futuro? Entraremos todes em consenso? Não sei se temos recursos para dar uma resposta definitiva a essas perguntas. O que podemos sim dizer é que, graças às reivindicações de LGBTI+, pessoas não-binárias e transgênero, em matéria de bate-papo, nada será como antes.